ANOMIA
PINTURA CONTEMPORÂNEA
Lícius Bossolan + Martha Werneck
Pequenas Ofélias e Icebergs II | MARTHA WERNECK
curadoria Duda Muniz
GALERIA MONICA FILGUEIRAS
Série exposta entre 08 de novembro e 15 de dezembro de 2019
de segunda a sexta, das 11h às 19h
Galeria Monica Filgueiras.
Rua Bela Cintra, 1533 - Jardins, São Paulo.
PEQUENAS OFÉLIAS E ICEBERGS II
Texto Duda Muniz
Com grande prazer a Galeria Monica Filgueiras recebe a exposição Pequenas Ofélias e Icebergs II, da artista plástica Martha Werneck. Pela primeira vez em São Paulo, essas obras testemunham o percurso e amadurecimento do trabalho de Martha Werneck, a quem conheço desde a graduação em Pintura na Universidade Federal do Rio de Janeiro, posto que fomos contemporâneos.
As pinturas aqui exibidas tratam de temática forte e poética, conjugando duas imagens que se complementam: mulheres retratadas como Ofélia, a personagem de Shakespeare em Hamlet (c.1601), e paisagens onde figuram esquematizações de icebergs.
A morte de Ofélia, jovem da alta nobreza da Dinamarca, filha de Polônio, irmã de Laertes e noiva do Príncipe Hamlet, é elogiada como uma das cenas mais poéticas da história da literatura. O tema tem destaque na pintura de artistas do final do Século XIX, da Irmandade Pré-Rafaelita, como Sir John Everett Millais (1829-1896) e John William Waterhouse (1849-1917).
A personagem Ofélia inspira essa série de obras e é reinterpretada por Martha Werneck, em cujas pinturas percebemos conexões com a filosofia de Emmanuel Lévinas e Gaston Bachelard. O trágico caminho de Ofélia denuncia questões de gênero, mas também deixa rastros de uma problemática de fundo mais amplo que abrange a condição humana, o Ser, e que possui uma perspectiva existencialista.
Aqui testemunhamos retratos femininos em tamanho natural - da própria artista e de mulheres que para ela posaram - todas representadas de forma particular como a personagem Ofélia. Também observamos pequenas pinturas de icebergs, repletas de cor e força. Elas encantam o espectador, fazem alusão ao que está ao alcance dos olhos e ao que está invisível, submerso. Dessa forma, os trabalhos em seu conjunto falam também sobre o consciente e o inconsciente, conceitos esses criados por Freud no século XX e amplamente investigados por psicanalistas e neurocientistas. Fica aqui nosso convite a um mergulho neste universo tão particular da artista, que compartilha com o público visitante sua visão sobre tais temas.
“Quando ela tentava subir os galhos inclinados,
Para aí pendurar as coroas de flores,
Um ramo invejoso se quebrou;
Ela e seus troféus floridos, ambos,
Despencaram juntos no arroio soluçante.
Suas roupas inflaram e, como sereia,
A mantiveram boiando um certo tempo;
Enquanto isso ela cantava fragmentos de velhas canções,
Inconsciente da própria desgraça
Como criatura nativa desse meio,
Criada para viver nesse elemento.
Mas não demoraria para que suas roupas,
Pesadas pela água que a encharcava,
Arrastassem a infortunada do seu canto suave
À morte lamacenta.”
William Shakespeare, Hamlet
(tradução de Millôr Fernandes, ed. L&M)
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Curadoria Duda Muniz;
Agradecimentos: Sandra Guimarães, Sônia Santos, Douglas França Risse, Effrem Bastos e Lícius Bossolan.
Os textos que acompanham os trabalhos são de autoria de Martha Werneck com revisão e co-autoria de Luana Manhães.
SOBRE OFÉLIA
Ofélia é personagem secundária da obra Hamlet, de Shakespeare. Apaixonada pelo protagonista e não sendo mais correspondida, sente-se solitária com a morte do pai e viagem do irmão. Não mais encontrando conexão com seu mundo, suicida-se lentamente em águas de um rio corrente. Essa grande Ofélia foi pintada no século XIX por artistas como Millais e Waterhouse.
As Ofélias aqui representadas são pequenas partes desse personagem maior, que busca na morte pela água - elemento essencialmente feminino e renovador - a solução para suas angústias.
Pequenas Ofélias são retratos de mulheres reais, representadas com atributos que as conectam ao que realizam na arte e na vida.
São mulheres que nos tocam por sua potência artística muitas vezes abafada pelo contexto a que nós, brasileiras, latinas, estamos submetidas diariamente através de um machismo estruturante e de políticas que desvalorizam a arte e a expressão cultural.
As pinturas aqui exibidas não deixam de ter em si uma crítica ao sistema que aprisiona, que sufoca e que faz com que a mulher artista se afogue em melancolia.
Ofélia poderá, pois, ser para nós o símbolo do suicídio feminino. Ela é realmente uma criatura nascida para morrer na água, encontra aí, como diz Shakespeare, “seu próprio elemento”. A água é o elemento da morte jovem e bela, da morte florida, e nos dramas da vida e da literatura é o elemento da morte sem orgulho nem vingança, do suicídio masoquista. A água é o símbolo profundo, orgânico da mulher que só sabe chorar suas dores e cujos olhos são facilmente “afogados de lágrimas”.
BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos. Ensaio Sobre a imaginação da matéria São Paulo: Martins Fontes, 2003, 2ª Edição. p 85.
A pesquisa pictórica para as Ofélias é baseada em estudos que partem da estética Romântica do século XIX, além das investigações técnicas da pintura figurativa contemporânea. Os trabalhos levam em conta sucessivas camadas de veladuras, fundos de imprimação colorida e underpaintings monocromáticos. Sobre isso importa ressaltar a harmonização da forma – construção do espaço, da matéria, equilíbrio das massas, claro-escuro, tom, mancha, linha, cor – e do conteúdo semântico explorados, além da incorporação de objetos ressignificados, que também atuam como suporte.